Três camadas de Noite destaca a versatilidade da perspectiva das mulheres na literatura
texto publicado na Revista Aorta
A experiência pessoal da dor pode facilmente se expandir para uma perspectiva social e coletiva a partir da escrita, afinal, o objeto livro é espaço possível de interpretação a cada leitura. Ainda que alguns editores, ou mesmo leitores, enxerguem como temas femininos algumas das questões levantadas por mulheres em romances, poemas, crônicas e livros de contos nos últimos anos, as possibilidades apontadas pelo olhar da mulher sobre o cuidado, a solidão, os filhos, a casa e a presença em sociedade, são universais.
E é esse olhar amplo sobre o mundo, a partir de um ponto de partida interno, que mais me chama atenção no novo romance da escritora e jornalista Vanessa Barbara, Três Camadas de Noite, publicado em 2024 pela Editora Fósforo.
A autora parte de uma experiência pessoal para transitar por temas contemporâneos e caros à muitas mulheres. Na primeira página, ainda no prólogo, Vanessa leva o leitor ao ponto de partida que cria a atmosfera do restante do livro: “Alguns momentos de luz: um café da tarde que tomei no quarto da maternidade, com chá e bolo de ameixa, enquanto o recém-nascido dormia ao meu lado”. A cena, logo entendemos, é um respiro possível no frenesi de noites mal dormidas, idas ao banheiro, choros, primeiros passos e um isolamento intenso que seguirá nos próximos meses.
“Parto de uma experiência pessoal – de ter sofrido depressão pós-parto, de passar quase um ano em isolamento com uma filha pequena, enfim. A gente lê muito sobre maternidade, sabe que é um lugar de grande solidão, mas viver isso sob essas circunstâncias foi o que me impulsionou a escrever em primeiro lugar”, afirma Vanessa.
Quando pergunto sobre a escrita a partir do tema maternidade, a autora destaca a narrativa como um caminho possível, uma temática que se impõem, a partir do cotidiano, ao processo. A limitação pode ser imposta por determinadas circunstâncias, como depressão, maternidade, pandemia, problemas financeiros, ou qualquer outra questão.
“Nosso cardápio de escolhas vai encolhendo. Lembro de um jogo chamado Depression Quest, que ilustra muito bem essa questão: quanto mais a depressão se aprofunda, menos opções o protagonista possui. Por isso também foi interessante ler a biografia de outros escritores: todos tiveram seu leque de escolhas limitado de alguma forma, e todos procuraram fazer o possível com o que tinham à mão”, destaca.
As biografias, aliás, partes não ficcionais da história, dialogam a todo momento com a narrativa ficcional. Vanessa lembra que elas não só se alternam, mas há um diálogo ali o tempo todo: por exemplo, quando esfria no mundo do Heitor, ele fica obcecado pela divisão entre friorentos e calorentos. São esses alguns dos pontos mais interessantes do livro.
“Enquanto isso, Lispector tem uma crise longa de depressão, reclama muito do frio da Suíça, e melhora nitidamente quando chega a primavera. Antes disso, Plath se suicida após uma blitz de inverno. Kafka toma sol pelado num spa naturalista. Ou então: enquanto a mãe de Heitor está isolada na quarentena da Covid, Henry James salta de cidade em cidade europeia, levando uma vida livre com muitos passeios culturais, socialização e tempo de ócio. Ambos têm a mesma idade. O contraste e a semelhança estão ali o tempo todo, ajudando a narrativa a avançar”, lembra a autora.
A narrativa de Três Camadas de Noite é claustrofóbica e, ao mesmo, cotidiana. Existe um tempero divertido, salpicado de forma ácida. Vanessa Barbara transita entre a realidade e a ficção para compor cenas cotidianas que se misturam a grandes personagens da mitologia grega, que aparecem na quase banalidade dos aprendizados de uma criança, permeados pela busca de significados e sentidos da mãe.
No meio de tudo, há ainda a busca pela escrita escondida nas frestas, já que "escritor que não escreve é um monstro que convida à loucura". E se a cidade de Heitor tem a medida exata de seu assombro, as mesmas distorções acontecem entre um corpo, uma família, um apartamento.
Ler mais mulheres tem sido um dos meus objetivos principais nos últimos anos, desde a criação do projeto Elas na Escrita e da minha própria entrada na literatura. Começar a escrever me despertou para uma realidade cruel, a de que mulheres ainda não ocupavam tantos espaços de destaque e prestígio quanto os homens quando falamos de escrita. Esse retrato parece ter ganhado algumas cores novas nos últimos anos e, timidamente, a presença de histórias e narrativas contadas por elas foi ganhando prateleiras e estantes.
A literatura contemporânea feita por mulheres brasileiras ganha especial destaque e potência na última década, mas é preciso lembrar que essa presença não deve ser vista como temporária, como característica de um determinado período, mas um espaço consolidado e constante. Ainda há muito o que dizer e muitas perspectivas para serem trabalhadas ao redor de diferentes temas, afinal, não há como considerar saturados perspectivas e pontos de partida escondidos por tantas décadas.
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