Tom na Fazenda retorna a São Paulo
Recentemente assisti ao espetáculo Tom na Fazenda, que volta em nova temporada para São Paulo, no Teatro Vivo, depois de circulação internacional e uma série de prêmios na bagagem. O espetáculo, que se destaca pela qualidade do texto e a constante tensão da montagem, foi vencedor dos prêmios da APCA, Associação de Críticos de Teatro deQuebec, Shell, Cesgranrio, APTR e Questão de Crítica.
Não saímos ilesos ao fim da apresentação. E posso dizer que a peça consegue criar uma experiência teatral como poucas, com o público colado à cadeira e os olhos sempre fixos no palco. Cada frase importa e a tensão chega a provocar algumas risadas nervosas na plateia.
Assisto ao espetáculo pela primeira vez em 2018, em Brasília, durante uma apresentação no Festival Cena Conteporânea, quando trabalhei como crítica teatral. E, como saio tão impactada como da primeira vez, decidi recompartilhar o texto que escrevi à época por aqui. Então, segue aqui o relato que dialoga com a espectadora de antes e de agora:
Foto: Victor Pollak
É difícil traduzir em palavras escritas a força de uma experiência cênica potente. Um dos espetáculos mais aguardados do festival, Tom na Fazenda impressiona pela dramaturgia impecável, a atuação brilhante do pequeno elenco em cena e pela inteligência da cenografia. Armando Babaioff (Tom), Gustavo Vaz (Francis) e Kelzy Ecard (a mãe) sustentam a voracidade de uma narrativa perturbadora e delicada. São duas horas de um premiado espetáculo que se desenvolve em múltiplas camadas e nós, da plateia, acompanhamos imóveis sem um único instante de desconexão.
Nos deparamos, logo no início, com Tom. Em um terno aparentemente caro e bem alinhado, o personagem chega à silenciosa fazenda enquanto grava mensagens de voz pelo celular. O preto da roupa reflete o motivo da visita: o velório do falecido namorado. A figura da mãe, um tanto receptiva e perdida entre as próprias verdades, mostra desconhecer a existência de Tom. Logo surge Francis, um truculento irmão disposto ao que for necessário para manter viva a rede de mentiras criadas para proteger as ilusões da família. Em cena, homofobia, violência, preconceito, afeto, dúvida e arrependimento se entrelaçam com maestria.
Acompanhamos um intenso arco de desenvolvimento de cada personagem enquanto sentimos o crescimento da lama que preenche cada ponto do corpo ao longo da narrativa. O cenário simples, formado por baldes pretos e um tanto de terra, completa-se pelo crescimento do barro. Aos poucos, é possível enxergar um homem que se submete aos devaneios de uma relação de posse e manipulação psicológica. Tom passa a viver na fazenda. Trabalha com os braços e descobre-se, dia após dia, quase satisfeito com a nova experiência. O diretor, Rodrigo Portella, nos brinda com soluções criativas e notáveis para contar uma boa história.
Foto: Victor Pollak
Os instantes de satisfação se alternam com a agressividade e violência, tanto física quanto psicológica, imposta pelo irmão. Bem e mal se misturam em uma rede complexa e é possível sentir compaixão pelo agressor ao descobrir a origem de seu isolamento. A invisibilidade é imposta ao homem pela pequena comunidade rural após uma agressão extrema, praticada ainda na adolescência. O isolamento desperta em Francis uma personalidade perdida em sua própria violência. Sem exageros, transitando com maestria entre o silêncio e a explosão, os atores dialogam de maneira certeira com o estado de loucura, perturbação e um afeto criado às avessas ao longo da história.
Entre a loucura e a quase realidade cotidiana
Por alguns instantes, o cotidiano da fazenda nos faz esquecer o devaneio a que se submetem aqueles três personagens. Logo, a submissa violência da relação entre o truculento heterossexual e o namorado de seu irmão traz à tona toda a loucura que cresce naquele pequeno espaço rodeado por lama. No início, um terno impecável. Ao fim, um corpo emporcalhado e cheio de hematomas. O público se depara, em uma imersão imediata, com temas de forte impacto e importante reflexão.
A tensão sexual entre os dois aumenta enquanto a bagunça do cenário trata de nos localizar na montanha-russa psicológica experimentada pelos personagens, que se desmontam esteticamente enquanto a dependência pela conturbada família aumenta. Apesar dos hematomas e do total afastamento de sua própria persona, Tom se submete ao potente laço de dependência criado pela fazenda. Entre o grito e o silêncio, ele permanece fixo ao lugar que não escolheu. A vida criada pelo forte quarteto em cena é extremamente convincente.
Foto: Victor Pollak
A cenografia, feita por Aurora dos Campos, e o cenário, de Bruno Perlatto, mostram-se fundamentais no diálogo com os corpos em cena. A iluminação, de Tomás Ribas, é pontual e certeira ao aumentar os pontos de tensão. O texto é inteligente e permeado por diálogos que se desenvolvem entre o fluxo de pensamento de Tom. A peça, originalmente escrita por Michel Barc Bouchard, transformou-se em filme e ganha agora uma montagem digna e potente no país. Uma morte cheia de segredos deixa um rastro de mentiras e dependências, além de um rasgo dramático de relações.
Aos poucos, descobrimos na mãe uma figura menos ingênua do que aquela demonstrada na primeira metade do espetáculo. A interpretação mais contida de Kelzy esparram-se na plateia através do olhar e contrasta com a força corporal de Francis e Tom. Camila Nhary entra em cena de maneira rápida e necessária, trazendo um inteligente alívio cômico e um ponto de fuga para a realidade.
A chegada da falsa namorada lembra aos olhos atentos do espectador a existência de uma realidade que parecia inexistir na construção da enlameada fazenda. A personagem dá o sopro final para derrubar a estrutura de mentiras criada com esforço e violência por Francis. Logo, a narrativa se encaminha para o final trágico e necessário. Somente outra morte violenta é capaz de encerrar a teia de loucura desencadeada pela primeira. Ao fim de duas horas de narrativa, um respiro coletivo cheio de êxtase. Vida longa ao teatro que nos remexe as estruturas.
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