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Foto do escritorIsabella de Andrade

Pernas grossas

Atualizado: 5 de fev. de 2021




Você sabia que o atrito das pernas grossas é constante ao longo de todo e qualquer caminho? E mais, faz suar as coxas de maneira excessiva no verão. Para as adeptas de saias e vestidos, não há escapatória: é preciso entregar-se ao bom e velho shortinho. A peça, pequena e prática, cumpre seu papel de sustentar o roçar das pernas sem criar incômodos maiores e torna-se símbolo de um guarda-roupa baseado no conforto e bom caimento para corpos avantajados.


Na infância, as perninhas roliças viram sinônimo de fofura e um corpinho muito bem ajeitado. Minha mãe conta que, logo depois de vir ao mundo, fui recebida com sorrisos pela pediatra, que me entregou em seus braços e disse em alto e bom som: “Essa vai ter umas pernocas, hein?”. O sucesso continua por algum tempo.


Na praia, na escola, entre os vizinhos. Em algum lugar entre minhas memórias (ou entre as invenções que tomei como lembranças certas) guardo o som de diferentes tons de voz: “Mas olha que perninhas grossas!”.

Logo o tom amistoso e sorridente das senhoras perde espaço. Na adolescência, a mutação do corpo torna-se mais evidente, e as tão bem-quistas pernocas parecem abrir espaço para coxas grossas, desajeitadas e vagarosas.


Ou assim me pareceu. Para permanecerem no olimpo dos elogios cotidianos, firmando espaço entre as mulheres que sustentam o inalcançável padrão de corpo hipotético das brasileiras, as pernas grossas devem acompanhar um corpo magro e curvilíneo. Por essa razão, logo os meus pequenos troféus da infância deram lugar a dois imensos pontos de incômodo. E como era de se esperar, eles me acompanhavam por toda a parte.


Nas aulas de ballet soube pela primeira vez que era gorda. Assim, sem desvios. Acompanhada por uma legião de pequenas e delicadas perninhas de meninas bailarinas, minhas coxas grossas logo se transformaram em meu principal ponto de preocupação. A professora, em sua não pedagogia artística, sentenciou: “Emagreça para continuar”.

Tive vergonha.


Para adequar-me ao padrão que imperava ao redor seria preciso diminuir as famigeradas pernas pela metade. Atordoada por meus tão confusos dez anos, não soube resolver a equação. Pedi para sair. “Mão, eu não quero mais fazer ballet”. E eu só queria dançar.


Naquele pequeno espaço de tempo tinha início uma longa cruzada. Como tantas mulheres, atormentei-me durante boa parte da vida pela perturbada busca pela magreza. Por um lado, a vontade de ter pernas tão longas e magras que eu logo seria convidada a desfilar por uma porção de passarelas. Por outro, a certeza de que aquele sistema deveria chegar ao fim. A ansiedade transformou-se em peso. Em um piscar de olhos, o ponteiro da temida balancinha de vidro, figura permanente no banheiro de casa, quase bateu no número 100.


Minha mãe, impulsionada pelo mundo em que aprendeu a caminhar, me orientava a controlar o apetite, diminuir os pratos, cortar os doces, pegar um bronze para disfarçar. No consultório, a voz repetitiva de uma porção de especialistas parecia não ter fim. O clichê interminável do processo de emagrecimento. Quantos pães são necessários para preencher um corpo vazio?

Apelei aos extremos. Perdi e ganhei peso em uma velocidade tremenda. Eu não queria buscar o padrão e, viciada, como tantas, vivia em razão dele. Entre revistas dietéticas, nutricionistas, inibidores de apetite, frases motivacionais e boas doses de agonia, muitos números foram embora.


Sabe que com 40 kg a menos a gente parece mais nova do que quando adolescente? Os olhares mudam, o flerte, os sorrisos, a empatia. Não há como escapar, meus amigos, eu experimentei por conta própria e lhes digo: o mundo é mais generoso com os corpos magros. Não sei ao certo quantos anos se passaram entre as idas e vindas da balança, mas ela transformou-se em um objeto tão presente quanto à escova de dente.


Tornei-me leitora, escritora, apaixonada por teatro, inclinada aos esportes. Por fora, bradava aos sete ventos a necessidade de colocar um ponto final nos padrões estéticos. Por dentro, eu planejava uma nova dieta para a viagem de praia. O corpo, enquanto estética, é um supérfluo? Sim. Eu deveria ser expulsa do clubinho cult de artistas da cidade por manter em alta os pensamentos sobre dietas, academia, mundo fitness, termogênicos e corpo ideal.


Ou não. Entender o espaço do corpo e o equilíbrio entre suas dores e vontades faz parte do processo criativo tanto quanto a maturação de ideias para um novo livro. Enquanto mulheres, a busca por um ponto de conexão entre corpo, mente e criatividade logo nos fará saciar a fome de ideias e os desejos da carne. Sem extremos.


É preciso saber deliciar-se com uma boa pilha de palavras, assim como um esparramado prato de macarrão. Há um tanto de autonomia e cuidado no entendimento das próprias pernas. Assim, o aprendizado das pernas roliças logo alcançará o restante do corpo, experimentando cada pedaço. Elas continuam grossas, mas, perto dos 30 anos, outra mutação, agora as temidas coxas grossas se exibem entre as calçadas com muito mais malemolência e, por que não, um tanto de autoridade.

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