O Amor vai virar pó
Mãe, você que me ensinou mais do que liberdade do que jamais soube ser livre por inteiro. Que largou montanhas e rios soltos pelo sonho de uma capital distante que se erguia aos poucos, entre muros e um tanto de pó. Ainda me espanto com a solidez incontestável de toda mulher que permanece em si mesma apesar da barbárie da cidade grande. Dá um medo de olhar lá fora, um respeito em te ver aqui dentro. Cresci nos dias em que tudo parecia possível e aprendi a acreditar que todas as coisas logo iriam florescer. Hoje tudo parece a ponto de terminar. Não sei o que dizer a minha menina. Entre tantas meias verdades, prefiro deixar o tempo passar. Não sei ser mãe, amante, amiga. O sol que eu tanto amo tem me enlouquecido um pouco e sei que minha curvatura já não permanece tão linear.
Em Brasília
o amor pode
virar pó.
E perder-se entre as ruas largas de uma cidade, jovem senhora, que não se permitiu ter esquinas para satisfazer seus prazeres. Sem esquina o encontro não é uma banalidade possível. E aqui há de morrer o amor como se perde um sonho. Desacreditada, andarei outra vez pelas ruas largas e pisarei as folhas escuras e secas de setembro, que contam os dias do reencontro desde as águas de março, que vieram outra vez fechar o verão daquele lugar. A falta de chuva nos resseca a pele, os pelos, os desejos e os poros.
Não há encontro possível no vazio da quase calada capital. Avanço sozinha para ver mais longe e, por um tanto de sorte, perco os olhos no horizonte que é puro céu. Carrego no bolso da calça suja de poeira a melancolia de uma cidade que se constrói e destrói a cada dia. E enlaço os dedos vez ou outra para variar o ritmo dos passos, enquanto as ruas sem nome me soam quase poéticas em seus pontos cardeais.
Uma retidão
Infinita.
Moro na asa do que chamo de pássaro e poderia ser avião. Na ilha fantasia bela que me esconde do peito e dos olhos o que o restante do mundo não pode mais acobertar. Não vejo (quase) homens e mulheres que dormem nas ruas, mas vejo o desequilíbrio dos ternos e saltos que descolorem o cerrado que tanto aprendi a amar. E minha menina pergunta quando sai a chuva, mãe? E vamos tão sozinhas quanto possível entre o plano de um poeta que arquitetou uma cidade pronta para a solidão.
E esse amor da menina, mãe, eu sei, também me abandonará no concreto torto e nas curvas lisas. E me reencontrará nos pedaços de manga podre que se aglomeram em qualquer pedaço de chão. E será pó a cada estiagem, retomando o nosso tempo de mergulho, céu, lago e cachoeiras que me preenchem a vontade de acordar à beira-mar.
O amor vai nos mergulhar outra vez o corpo. Vai beijar bocas brancas de uma estiagem que dança entre árvores tortas. No nariz que sangra poeira para não sentir o cheiro da própria carne a se desfazer em pó. De gente. Por fora secos, molharemos cada centímetro de pele nua e línguas emaranhadas. Como um poema de versos repetidos, aceitaremos o destino de aprender o amor entre galhos tristes e pessoas tortas. Ignoraremos as reviravoltas do Congresso e a loucura dos jornais.
E assim, lembraremos o amor. Na orla que fingimos ser praia e na mistura de horizontes que nos fez perdidas enquanto crianças de uma cidade só. Rolaremos os cabelos na terra para aplaudir outra vez o pôr-do-sol dourado entre prédios curtos e um sonho que se soube ainda menor. Entre ônibus cheios e prédios lotados, entre frutas maduras e feiras baratas, entre paredes vazias e flores mortas, eu te juro, mãe, eu e a menina, não iremos sós.
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