Literatura como superação
A escritora Stella Florence lança seu novo livro, mais um de seus trabalhos que trazem temáticas femininas como ponto de inspiração e reflexão.
“Esse livro é muito especial para mim: lutar contra a violência sexual é uma espécie de cruzada particular, uma cruzada na qual me lanço serenamente – na porrada a gente não muda a cabeça de ninguém”.
(Stella Florence)
De maneira leve, ainda que profunda, Stella Florence consegue abordar o difícil tema do estupro em seu novo livro, Eu me possuo. A escolha foi por mostrar a história de uma protagonista que já traçou seu caminho de superação da violência e reencontra o antigo homem que a fez sofrer no passado. Com uma escrita madura no novo romance, Florence utiliza muitas de suas próprias experiências para dar vida ao personagem principal, como é costume em seus trabalhos. A ideia do livro é construir e possibilitar mais um espaço para um tema ao mesmo tempo antigo e atual e que precisa ser debatido, mostrado, discutido e conversado a cada dia. “Se cada um, no seu ramo de atuação profissional, no seu nicho social e familiar, fizer um pouquinho, conseguiremos um mundo diferente no futuro”, afirma a escritora.
Florence não esconde que também já passou pela violenta experiência e a ideia para o livro veio justamente a partir daquilo que vivenciou, tendo passado por duas tentativas e dois estupros. A mensagem levada aos leitores é clara: a mulher deve exercitar sua autonomia e direito de decisão em todas as áreas de sua vida. “Eu precisei de mais maturidade para escrever esse assunto, pois meu tom sempre foi mais leve e humorado, mas nesse assunto não dá para tirar nada de humor, nada de risível ou engraçado. Não tem como fazer piada, então eu procurei encontrar um tom que fosse leve na medida certa, que eu não perdesse a profundidade, que não se tornasse um melodrama, e que não pesasse. Eu queria fazer um livro solar, pois já basta ter passado por essa experiência. Queria falar sobre a reconstrução daquela mulher”, conta a autora. A história contada é justamente aquela em que, tendo passado pelo momento de se fechar para o mundo e para novas experiências afetivas e sexuais, a mulher encontra seu ponto de partida para a transformação.
A escritora sempre se identificou com temas pessoais e de pessoas próximas e conta que quando uma ficção é criada, existe um distanciamento para lidar melhor com a questão, enquanto isso, quando o tema trabalho já aconteceu com a autora, há mais paixão pela escrita e pela criação do novo livro. Neste tema, tão difícil e doloroso de ser trabalhado, a literatura aparece como outro caminho de abordagem. “Hoje as pessoas falam mais sobre o estupro e isso é muito importante. A literatura traz outro viés, a gente lê e acompanha de uma maneira mais desarmada. Tem muito amor e sexo no livro, pois queria trazer essa cura justamente onde ela se feriu. Têm homens no livro, um retrato mais amplo, têm caras muito legais. A Karina tem uma experiência de parceria e aprendizado com vários desses homens. Para mostrar esse outro viés também”, afirma.
Florence conquistou a confiança de seus leitores enquanto publicava seus últimos 10 livros e conta que diversos deles a procuram para trocar confidências. Para ela, este é outro importante ponto em seu último romance: criar tal identificação com as leitoras que passaram por este tipo de violência, que elas possam entender, através da personagem, que a culpa nunca é da vítima. “ao longo desses anos escutei muitas histórias. Então eu criei a Karina a partir de experiências minhas e que eu fui ouvindo de outras pessoas e cheguei a um denominador comum: todas as vítimas achavam que a culpa era delas, inclusive eu”, conta a escritora. Depois de ter percebido que esse traço era forte e recorrente, Stella decidiu tratar o tema mais a fundo e a partir disso surgiu o romance. A ideia principal é que os leitores possam ter uma sensação de partilha com o livro e que a literatura possa contribuir, cada vez mais, para a expansão desse espaço de diálogo e reflexão.
Trecho do livro Eu me possuo
“Gustavo, você não se identifica como um estuprador porque pensa que estupros são feitos apenas por criminosos em esquinas escuras. Mas há maridos que estupram suas esposas, há namorados que estupram suas namoradas, há amigos que estupram suas amigas. E muitos desses relacionamentos continuam, em meio às mordaças da necessidade, do medo, e até mesmo do amor asfixiado”.
Depoimento
F.R é uma das leitoras assíduas de Stella Florence que, sentindo-se confortável e bem recebida, compartilhou suas próprias experiências, pensamentos, violências e dificuldades com a escritora. Depois de intensas conversas, e de ter relado seu próprio caso de estupro, F.R foi convidada a escrever a orelha do livro de Florence e, recentemente, deu seu depoimento sobre o abuso infantil. Apesar de não ser a questão debatida no livro, a conversa entre leitora e escritora surgiu após lerem uma matéria de jornal.
“Sobre a entrevista da delegada Cristiana Bento, eu me identifiquei muito, principalmente na parte que ela fala sobre o abuso infantil. É aquilo mesmo! A criança nunca esquece e as consequências. A família e a sociedade fazerem vista grossa pra essa monstruosidade é condenar a vítima a uma vida cheia de medos e tristezas, uma tristeza que nem sequer temos o direito de expressar, afinal aos olhos dos outros está tudo bem, nada aconteceu. Quando você tem uma doença, perde alguém querido, qualquer que seja seu problema, você tem o direito de chorar em público, de viver o luto, de ser consolado. Mas quando você sofre abuso infantil é jogado num buraco pra sofrer sozinho, só que você é criança e não sabe lidar com isso, então dói mais ainda. É muito, mas muito importante mesmo que a família e a escola conversem com as crianças a respeito desse assunto.A cada oportunidade que ele tiver, ele irá mais adiante. Abuso nem sempre deixa marcas físicas, mas só nós sabemos o quanto ele dói, o quanto mutila nossos relacionamentos no futuro.” (F.R)
Livro Eu me possuo, de Stella Florence
Editora Panda Books
Romance
184 páginas
R$ 35,90
Outras obras da escritora
Os indecentes
Só saio daqui magra
32
O diabo que te carregue
Ser menina é tudo de bom
Ciúme, chulé é um apelido ridículo
Ele me trocou por uma porca chauvinista
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