Fome, de Roxanne Gay, é um potente relato sobre a experiência do corpo [Resenha]
Fome: Um relato cru e sincero de como é viver no corpo de uma mulher grande. Roxanne Gay, uma voz influente para a geração atual e autora do best-seller Má feminista, decidiu colocar em páginas o assunto que mais a atormentou ao longo da vida: o próprio corpo. De maneira direta e sincera, Roxanne nos mostra em Fome, um desgaste até as últimas consequências do que a vontade voraz de proteger a própria identidade contra o mundo externo pode fazer.
Os traumas de uma infância problemática e envolta por silêncios tomam conta da narradora, que conta sua própria biografia, envolta pelo desgaste do peso e a fome constante. O apetite voraz disfarça os traumas escondidos e decreta o silêncio de quem não tem coragem de mostrar o próprio passado. A narrativa é direta, sem rodeios. Leio e posso sentir o incômodo, o excesso, a sobra e o descontrole. Roxanne é forte e também voraz.
Com muita coragem, a autora decidi colocar nas páginas tudo aquilo o que nunca se atreveu a dizer. O resultado é um livro cru, sincero. Uma história que não é de sucesso, e sim de trajetórias. Fome é um manifesto pela convivência. Leio rapidamente e me identifico com o desespero que envolve a autora que perde o instante certo de se permitir pausar. Roxanne se lança ao mundo e foge constantemente das próprias verdades.
Fome mostra a verdade do apetite entre as páginas
Fome cria um diálogo ainda mais importante e potente ao mostrar sem rodeios as constantes falhas e tentativas. A cobrança externa, a culpa ao falhar, o desânimo do próximo reinício. A autora se coloca em livro aberto e desperta um alerta voraz. Professora universitária, mulher negra, bissexual e filha de imigrantes haitianos, Roxanne entende que o que mais lhe aflige para colocar em diálogo é o próprio corpo. Ela chegou a pesar 262 kg, distribuídos em seus 1,90 m de altura.
Enquanto menina, sofreu um estupro por um grupo de garotos e, a partir de então, passou a ingerir imensas quantidades de alimento para aumentar sua estrutura corporal e se sentir segura. Entre os algozes, um adolescente por quem ela era apaixonada. Com culpa e vergonha, a escritora guardou a fundo os relatos que vieram à tona somente agora, com a publicação de sua obra de não-ficção. O livro é forte e dialoga diretamente com todas as mulheres que já se encontraram envoltas pela necessidade constante de adequar o próprio corpo às exigências sociais.
Os padrões são cruéis e eficientes em sua função. O livro aparece como um importante levante para quebrar as regras. Perde-se o medo de falar da própria voracidade e, assim, encontra-se espaço para mostrar as próprias verdades. Toda mulher deveria ler o relato de Roxanne.
Experiência pessoal e a relação com o livro
Depois de emagrecer 28kg eu fui tomada por uma onda de ex-gorda revolucionária. Empenhada em manter o corpo em forma e satisfeita pelos elogios e surpresas constantes, dei por mim a distribuir conselhos de dietas e exercícios físicos a quem tivesse alguns quilos a mais. Na época, acreditei que ajudaria a todos, colaborando para que mais mulheres pudessem atravessar o milagre emagrecedor como eu atravessei.
É irresistível essa sensação de ajudar o outro, transmitir conhecimento. Mas a euforia durou pouco. A aproximação do vestibular, o nervosismo do cotidiano, o costume, os vícios e a própria tendência de retorno do corpo me fizeram recuperar, pouco a pouco, o peso perdido.
Na universidade eu vi o ponteiro da balança disparar novamente. Nunca mais voltei aos 94kg, o medo constante da sensação diária que me acompanhava naquela época me fazia tomar medidas drásticas sempre que os quilos teimavam em subir demais. Entre shakes, sopas, balanças, medidas, jejuns, muita água e dietas mirabolantes, o teimoso corpo voltava a ocupar menos espaço. Externamente, aos olhos sorridentes de quem parabeniza. Os bastidores não importavam.
Entre páginas e a realidade
Ao emagrecer, os elogios sempre foram uma certeza rápida. E nesse ponto não há discriminação, seja nos corredores da escola, universidade, empresas, comunicação, teatro, homens, mulheres, altos, baixos, brancos, pretos, pardos, doutores, estudantes, chefes e subordinados, todos sempre concordaram na glória e no sorriso cotidiano entregue a uma boa mulher que ostente um bom corpo, delgado e comportado.
Diferente de outros relatos sobre peso, essa não é uma história sobre triunfo. “Eu gostaria de escrever um livro sobre estar em paz e amar a mim mesma, inteiramente, de qualquer tamanho. Em vez disso, eu escrevi este livro, que foi a experiência mais difícil da minha vida, algo bem mais desafiador do que eu jamais imaginara”, afirma a autora em entrevista.
O corpo é uma festa.
Livro Fome
Roxanne Gay
Sinopse:
Nesta autobiografia escrita com sinceridade impressionante, a autora best-seller Roxane Gay fala sobre como, após sofrer um abuso sexual aos doze anos, passou a utilizar seu próprio corpo como um esconderijo contra os seus piores medos. Ao comer compulsivamente para afastar os olhares alheios, por anos Roxane guardou sua história apenas para si. Até conceber este livro.
Esta não é uma narrativa bem-sucedida de perda de peso. E este também não é um livro que Roxane gostaria de escrever. Entretanto, é uma história que precisa ser contada, e ela o faz com seu estilo contundente e impetuoso, ainda que dotado de um humor mordaz, características que a tornaram uma das vozes mais marcantes de sua geração. ‘Fome’ é um relato ousado, doloroso e arrebatador.
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