Entre Marias e Clarissas
Clarissa era o reflexo de um tempo de aprender no pranto. O peito doído, solidão apertada, vontade desenfreada de se fazer escutar. Clarissa era jovem de corpo, mente e ideias, ainda criança nas sensações. Sentia o amor e o desamor com intensidade tamanha que mal lhe parecia possível controlar, era menina, sim, e tinha um medo descabido de que fosse descoberta a sua meninice. Não sabia diferenciar o que era começo, fim ou desenrolar. Penteava os cabelos que lhe chegavam quase à cintura, diziam que eram brilhosos, e caminhava sozinha até que toda dor pudesse passar. Clarissa abraçou a solidão como a única companhia que nunca havia lhe deixado de lhe amparar. E permitia a dor, abraçava a dor, sentia os erros corroerem as entranhas. Desacreditou o amor até que quase não lhe fosse mais possível flutuar. Certo dia, o peso do tudo misturado ao nada tanto lhe doía que resolveu guardar toda antiga folha e fechar os olhos para navegar. Foi aí que conheceu Maria e soube então, Maria era menina-mulher-moça, tudo junto, sem ter vergonha ou medo de se adaptar. Sentia amor de vários jeitos e enlaçava os dedos em seu próprio vestido ao caminhar, feliz, ainda que só. Maria gostava de encontrar olhares e permitir que lhe presenteasse de surpresas o tempo, sem temer que o laço virasse nó. Andava só ou acompanhada e compreendia o tempo, que agora já não era um carrasco sem dó. Deram as mãos uma na outra, Clarissa e Maria, tantas outras, caminhavam na direção do vento, sorrindo a toda sensação que lhes acompanhasse, fosse ela doce, plena, esburacada ou um suspiro só.
***
Maria, pequenina ainda, como tantas outras, se agarraria ao fiel princípio de não deixar-se levar ao instante do nada. Entorpecida pelo desejo inalterado de envolver-se no mergulho que nos faz permanecer com os olhos viciados em um ponto de memória, arrancaria a própria pele na tentativa de não se fazer desintegrar. A descoberta de toda intensa sensação permaneceria ali, como uma crosta que envolve os pequenos buracos que se abrem com a percepção do fim. Ainda que o intenso ardor viesse da certeza de não poder, outra vez, jogar os risos e os cabelos ao princípio, como se o tempo não fosse capaz de firmar o concreto da última vez, permaneceria fiel a cumplicidade de si. Insone, com o olfato, o tato e os pequeninos dedos perdidos entre a mais doce e absurda ilusão. Construía edifícios de sensações, ruas de sonhos envoltas em cidades de papel e ao fim dos dias, concreto. Sentia a dureza cinza de toda a desconstrução que já não consegue deixar-se de fazer. Titubeava outra vez ao encontrar-se com o relógio. Era então Maria menina, com as unhas cravadas em garras nos sonhos ainda por fazer. Engolia o tempo. Era então Maria moça, com o sal dos olhos secos e uma teia de verdades a tecer. Olhava outra vez a janela, não havia estrela, mas agora saberia que os olhos buscam a poesia do céu que querem ver. Era então Maria mulher, desgarrada de todo instante cinza-concreto, escutava e abraçava o mundo quase vazio, deixando soprar o vento em solitude do anoitecer. Soltava os pés na areia mansa, sem deixar enraizar o próprio ser. Haveria de saber, bastaria o riso terno ao caminho incerto, ainda que pulsasse a vontade de endurecer. Ao fim, arde a impossibilidade de poder se agarrar ao princípio.
(…)
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