A Escrita como Faca e outros Textos ou: Escrever o todo a partir de si
Escrever a vida, entrelaçar a experiência da vida com a escrita, encontrar um elo, uma costura, um ponto de partida que abra um círculo entre os dois lados, transformando os lados em um só. Assim me parece a relação de Annie Ernaux com o seu processo de escrita. Sua autossociobiografia faz muito mais do que escrever a partir de si, partindo para a criação de um registro pessoal para retratar um tempo, entrelaçar histórias.
Essa edição da newsletter é a primeira de uma série que inicio sobre processos de escrita. Um espaço pra gente compartilhar dicas, ideia, pontos de partida, dúvidas, proximidades e afastamentos que envolvem o processo de escrever.
Li alguns livros que se entrelaçaram bastante nos últimos meses e que me fizeram mergulhar nessa escrita a partir da memória e da experiência, sem caminhar pelo egocentrismo, mas abrindo mão dos próprios espaços internos para compartilhar com o outro a trajetória de uma vida. Três deles se conectaram e mexeram comigo de forma bem interna:
- A escrita como faca e outros textos, Annie Ernaux (Editora Fósforo)
- A viagem inútil, Camila Sosa Villada (Editora Fósforo)
- A trilogia de Copenhagen, Tove Ditlevsen, (Companhia das Letras)
Escrever a partir da vida
Tove é considerada percussora de Annie Ernaux, promovendo esse experimento de transformar o próprio cotidiano em narrativa e linguagem. Outro dia falarei mais da Trilogia de Copenhagen e de Trans Escrita mas, hoje, quero focar em A Escrita como Faca e Trans Escrita, que me inspiraram realmente em muitos pontos relacionados à escrita e ao meu processo criativo.
Aliás, ler bons livros tem sido um dos meus principais gatilhos e pontos de motivação para começar a escrever. E aqui eu parto de romances, poesia, contos, livros sobre criação, o que importa é que sejam bons e dialoguem com o meu corpo em questão de ritmo.
A Escrita como Faca é recheado de ótimas entrevistas feitas com Annie Ernaux, que transita pelas perguntas com a fluidez que acompanha boas escritoras, transformando tudo em narrativa.
Exite ali uma naturalidade e uma verdade muito presente para refletir sobre o próprio processo e tentar encontrar respostas que muitas vezes não caminham tento pelo consciente. Logo no início da leitura destaquei essa frase, que se relaciona muito com os meus processos:
A verdade no relato do indizível
Acredito que essa sinceridade com a própria falta de explicar de forma minuciosa alguma espécie de metodologia ou caminho específico, pode ajudar a soltar muitos processos travados, afinal, vejo muita de gente tentando se forçar a encontrar alguma fórmula matemática que conduza ao início do processo de escrita. Aqui, partimos da premissa da experiência, do desejo e do impulso como mola de propulsão. A criação se esparramando enquanto encontra um espaço fluido e sem exigências para existir ainda antes da fase de lapidação.
Como bem marca a autora: “Quando o indizível vem à luz, ele é político”.
Annie destaca que parte de um sentimento, um desejo que se forma e pode continuar latente por muito tempo e a escrita parte do entendimento e da permissão desse desejo. Não há uma ideia primordial, uma fagulha de genialidade que explode na busca por uma narrativa incrível e única, como muitos podem imaginar. Aqui, a escrita se permite fluir a partir de um olhar para dentro, da busca pelo espaço interior e pelos desejos que ele tenta demonstrar. Gosto muito de pensar na criação literária a partir dessa premissa.
Há questões extremamente difíceis e personagens cotidianos e pessoais, mas universais, na narrativa da autora: O pai, a relação com a mãe, o amante, a permissão ao desejo, os anos que correm em meio ao turbilhão da vida política, social e interior; a separação, o fim, o recomeço. São temas únicos a partir de cada experiência, mas constantes quando pensamos em sociedade.
Pontos de partida e a criação como desejo
Outro ótimo ponto que a autora levanta para nos posicionar sobre possíveis começos, essa parte tão temida da página em branco, do início da escrita de qualquer projeto, é de que ela parte de um tempo. Annie diz que não parte de uma memória específica, de uma ideia, mas de um tempo em sua vida. Ou seja, existe aqui a possibilidade de contextualizar o desejo em uma época e tudo o que envolve esse período (incertezas, mudança, amor, separação) e a partir dessa costura, mergulhar na narrativa.
A Escrita como Faca me convida a mergulhar em alguns pontos de partida para a criação:
- Memória
- O retrato de um tempo pessoal
- A experiência interior e particular, o indizível que alcança o todo
- O sentimento e o desejo latente
- A escrita como relato
Aqui, volto ao início. Annie parte do particular para alcançar o todo, mostrando que falar a partir de si é um ótimo caminho para falar com o todo.
“Salvar do apagamento os seres e as coisas de que fui protagonista, palco ou testemunha, em uma sociedade e em um tempo dados – sim, sinto que está a aí minha grande motivação para escrever”.